O limite da recuperação judicial
Ivanildo Figueiredo
O instituto da recuperação judicial de empresas vem formando uma jurisprudência baseada na vivência e tramitação de milhares de processos, desde a entrada em vigor da Lei 11.101, em junho de 2005. Segundo estatísticas da Serasa-Experian, do início da vigência da lei até agosto de 2012, foram requeridos, em todo Brasil, cerca de 3.147 processos de recuperação judicial, sendo deferidos 2.293 dos pedidos (73%). De todas as ações iniciadas, foram concedidas 710 recuperações judiciais (22% dos processos), estágio que importa na aprovação dos planos pelas assembleias de credores.
A finalidade da recuperação judicial é o saneamento financeiro e patrimonial da empresa em crise. A empresa em crise, segundo a definição legal, é aquela que não consegue pagar pontualmente as suas dívidas, apresentando estado de insolvência temporária. A recuperação judicial, cabe esclarecer, não é processo substitutivo da concordata, considerando que os seus efeitos e abrangência são bem mais amplos do que esse antigo instituto do direito falimentar. A concordata terminou os seus dias como sinônimo de calote, diante dos abusos praticados por devedores contumazes, que se aproveitavam dessa moratória judicial muito mais com o intuito de adiar a decretação da falência e assim tentar burlar o pagamento aos credores, os quais, diante de processos judiciais lentos, complicados e demorados, terminavam por desistir da cobrança dos seus créditos. E assim se consagrou, no Brasil, infelizmente, a expressão “indústria da concordata”, reveladora da face desmoralizada desse processo, incapaz tanto de possibilitar a restauração da capacidade de pagamento da empresa devedora, como de permitir aos credores, ainda que de modo parcial, a satisfação dos seus créditos.
O Brasil está classificado, no relatório comparativo das economias elaborado, anualmente, pelo Banco Mundial (doingbusiness.org), entre 183 países avaliados, na posição 136º, no critério de resolução de insolvência empresarial, isto é, referente ao nível de recuperação de créditos. Estamos situados, segundo essa classificação, atrás de vários países africanos, como Uganda, Senegal, Togo, Etiópia e Quênia. O índice médio de recuperação de créditos em processos judiciais de insolvência atinge, hoje, em nosso país, mesmo após a Lei n° 11.101/2005, o patamar de 18%. Ou seja, os credores ainda perdem, nas ações falimentares, mais de 80% dos seus créditos. Nos países da América Latina, a média de recuperação de créditos situa-se na casa de 30 %. Nos países europeus, é de quase 70 % o volume de recuperação de créditos, enquanto nos Estados Unidos o percentual de pagamentos nos processos de insolvência alcança o índice de 85 %, mesmo após a crise financeira de 2008. No Japão, o índice de perda por insolvência, segundo o Banco Mundial, é de inacreditável 1 %.
No Brasil, de acordo com o art. 47 da Lei 11.101/2005, a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa devedora, assim justificada para fins da preservação da empresa como ente produtivo, geradora de empregos, de produção de bens e serviços e recolhimento de tributos. Esse princípio preservacionista da empresa, porém, não pode nem deve ser interpretado em termos absolutos, de modo a desconsiderar os princípios superiores do ordenamento jurídico. Em nome da preservação da empresa, sem embargo, os direitos dos credores não podem ser limitados, reduzidos ou até mesmo vilipendiados, sem justificativa lógica, razoável.
Em alguns planos de recuperação judicial, ainda que aprovados pelas assembleias de credores, constatou-se a concessão de perdão ou de remissão da dívida em montante superior a 80% do total do débito da empresa, chegando a alcançar o patamar, em casos sem qualquer justificativa plausível, de 90% de desconto para pagamento do crédito devido. Esses índices elevados e desproporcionais indicam insolvência definitiva, estado de falência, porque, ao admitir-se nível tal de perdão da dívida, a única conclusão é a de que a empresa em recuperação demonstra-se, sem sombra de dúvidas, irrecuperável. Além desse perdão inexplicável, desprovido de nexo lógico, também se verificaram casos em que a empresa devedora se comprometia a pagar sua dívida depreciada no longo prazo de 20 anos, sem a incidência de juros ou atualização monetária, com 3 anos de carência para iniciar o pagamento, em módicas parcelas mensais. Em outros processos, o pagamento das prestações ficava, inclusive, condicionado à existência de fluxo de caixa na empresa devedora. Caso não houvesse fluxo de caixa superavitário, o pagamento aos credores, simplesmente, ficaria postergado para prazos incertos, indeterminados e quase intermináveis.
Planos de recuperação com propostas de pagamento dessa natureza, com descontos absurdos, revelam-se inaceitáveis, porque conspiram contra o próprio sentido e espírito da lei, que é recuperar empresas temporariamente insolventes que possam ser saneadas, e não de enriquecer o devedor à conta do sacrifício do credor e do mercado. Nas lições de juristas como Fábio Ulhoa Coelho, Paulo Penalva Santos e Sérgio Campinho, dentre os nossos principais doutrinadores de direito empresarial, a recuperação judicial não pode representar sacrifício maior para os credores, servindo como instrumento de benefício ou enriquecimento sem causa do devedor. Não é possível, nessa linha de raciocínio, admitir que o processo de recuperação judicial possa ser manipulado como instrumento jurídico para frustrar o pagamento de dívidas, com a conivência do Poder Judiciário, ao qual compete, ao final, a concessão da recuperação. Mesmo considerando a assembleia de credores como órgão superior de deliberação na aprovação do plano de recuperação judicial, cabe ao juiz, em todo e qualquer caso, verificar o cumprimento dos pressupostos legais, especialmente os derivados da aplicação dos princípios gerais do direito.
Dentre os princípios gerais de direito que devem ser observados pela assembleia de credores, encontra-se aquele que busca evitar o enriquecimento sem causa do devedor, à custa do sacrifício dos credores (Código Civil, art. 884). Não é lícito à empresa devedora, por exemplo, explorando artifícios processuais, oferecer para pagamento valores irrisórios, quando ela se beneficiou dos créditos auferidos, ampliando seus ganhos e rendimentos, com efetiva vantagem da própria empresa ou desviados em proveito pessoal dos seus sócios ou acionistas controladores. Tal conduta também ofende a outros dois princípios fundamentais de direito privado, os princípios da probidade e o da boa-fé (Código Civil, art. 422). Isto porque não é lícito a nenhuma das partes contratantes descumprir obrigações legítimas assumidas no ato voluntário de contratação, de modo a reduzir a outra parte a uma situação iníqua, inferiorizada, de ser forçada a receber uma mínima parte do seu crédito, sob a ameaça de nada receber.
Mas, acima de todos os princípios de direito privado prevalece, com superioridade dogmática, o princípio constitucional da propriedade privada (Constituição Federal, art. 5º, XXII, e art. 170, II), segundo o qual o direito de propriedade deverá ser, sempre, objeto de proteção especial no nosso ordenamento jurídico. Qualquer disposição infraconstitucional, constante de lei, regulamento ou enunciado infralegal, como uma sentença em plano de recuperação judicial, violadora de direito patrimonial líquido e certo, que venha, direta ou indiretamente, negar ou restringir a aplicabilidade do princípio da propriedade privada, pode ser considerada juridicamente ineficaz.
Apesar da Lei 11.101/2005 atribuir à assembleia de credores competência para a aprovação do plano de recuperação judicial, cabendo ao juiz homologar a deliberação dos credores (art. 58), a assembleia não pode ser considerada como instância absoluta, caso as suas deliberações venham a violar ou negar a prevalência dos princípios jurídicos superiores e normas cogentes. Na esteira desse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça proferiu recente decisão na qual considerou que “aassembleia de credores é soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial. Contudo, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial”. (STJ, 3ª Turma, REsp 1314209-SP, Relatora Min. Nancy Andrighi, DJe 01/06/2012). Em precedente anterior, a Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Agravo de Instrumento nº 0136362, Relator Des. Manoel Pereira Calças, 28/02/2012), já havia constatado “graves violações aos clássicos princípios gerais do direito, a diversos princípios constitucionais e às regras de ordem pública, não apresentando condições constitucionais, principiológicas e legais para ser homologado pelo Poder Judiciário”, em plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia de credores, declarando o plano nulo e ordenando a elaboração de nova proposta, sob pena de decretação da falência da empresa.
A Lei 11.101/2005, diferente do antigo regime da concordata, não estabeleceu um patamar mínimo para o perdão ou remissão da dívida, que alguns planos denominam, contraditoriamente, de “deságio”. Na lei anterior, caso a empresa devedora não conseguisse pagar, ao menos, 50 % ou metade da sua dívida quirografária, ela era declarada falida. Esse mesmo patamar, que representa a equação contábil da insolvência, vem previsto na lei atual, mas quando trata da extinção das obrigações na falência (art. 158). Todavia, essa equação da insolvência ainda permanece implícita em nosso sistema de direito positivo, constituindo limite que deveria ser observado na aprovação de qualquer plano de recuperação judicial. Se a empresa devedora não consegue pagar, ao menos, metade da sua dívida, ela demonstra ser uma empresa insolvente e, por isso mesmo, economicamente irrecuperável. Nessa situação fática, a única solução jurídica é a decretação da falência da empresa, por importar em sacrifício menor para os direitos dos credores, com a sanção merecida aos empresários inadimplentes e maus pagadores.